Nelson Faria, sj
Vivemos a ilusão de que as más ações afetam somente as vidas dos que estão diretamente envolvidos nelas. Contudo, em cada um dos nossos passos mal andados, liberta-se uma força caótica que tem consequências no tecido da Criação. Podem pensar que exagero, mas olhemos para os efeitos de uma mentira. Cada vez que mentimos, corremos o risco de que o deslize de conveniência – que juramos ser um ato isolado – ganhe a forma de hábito. E cada pessoa ferida pela nossa mentira torna-se mais suscetível a essa prática, pois vai-se criando uma certa indiferença ao valor da verdade.
Criamos deuses quando sacrificamos a verdade à conveniência. E eles vão exigir que os adoremos. Seja a honra, a riqueza, o poder ou o prazer, todos eles pedirão que sacrifiquemos o que temos de mais valioso no seu altar: a consciência de que fomos criados por amor, para amar e para responder em amor ao Deus de amor.
Nós cometemos erros pelo caminho da vida. Contudo, o que nos define é o facto de sermos filhos amados de Deus. Cada gesto desonesto, cada falta à caridade, à verdade, à bondade, à justiça, não é somente um inconveniente social. É uma oportunidade perdida para fazer o bem e que desperta a tal força caótica cujo alcance não podemos medir nem controlar: o pecado.
Ao não amar – Deus, o próximo ou a nós mesmos – ou ao amar mal, abre-se uma ferida no tecido da Criação, ferida essa que pode infetar, gangrenar e contagiar. Pensar que há pecado sem vítima é uma ilusão, pois pelo menos Deus e nós mesmos sairemos sempre feridos. E para que a Criação seja curada, precisamos de um milagre, precisamos da graça.
Essa graça restauradora chega até nós de forma mais plena através do sacramento da reconciliação, sacramento que a Igreja pede que celebremos pelo menos uma vez por ano, mas cujos frutos são mais fecundos se celebrado mensalmente. O Senhor instituiu-o para nossa salvação e precisamos tanto dele. Ainda assim, é bom saber que no ato penitencial da Eucaristia, os pecados veniais, pecados que perturbam a nossa relação com Deus, mas não a ferem terminantemente, são perdoados.
Em cada Eucaristia, logo depois de darmos graças a Deus por nos reunir no amor de Cristo, pedimos perdão por nem sempre sermos amor, por amarmos mal, por sermos pouco generosos na resposta a esse amor. Não confundamos isto com um mero pedido de desculpas, como se o pecado fosse o equivalente na religião a faltar a uma aula ou ao emprego. Em cada Kyrie Eleison suplicamos a cura de Deus, tal como o cego Bartimeu às portas de Jericó, que grita: «Jesus, Filho de David, tem piedade de mim».
Quando exclamamos na Eucaristia «Senhor, tende piedade de nós», quando ouvimos a súplica do sacerdote para que o Senhor tenha compaixão de todos nós, somos Bartimeu, cegos fora do caminho. Em cada Eucaristia, nós pedimos, com Bartimeu, para voltar a ver, para nos libertarmos das amarras do pecado. Quando pedimos perdão, entramos na dinâmica da conversão, pedindo que o Senhor nos veja e restaure a vista, para ver o mundo como é, um lugar de bondade desvirtuado pelas nossas ações, e ver os outros como irmãos, mesmo quando também eles estão cegos.
Ao pedir na Eucaristia que o Senhor tenha compaixão de nós e perdoe todos os nossos pecados, é a voz do cego Bartimeu que ecoa. Cegos pelo pecado, sabemos que não vemos e que precisamos que o Senhor nos veja e nos chame para podermos voltar a ver. E ver como Ele vê, associando-nos ao gesto de João na Última Ceia, que ao inclinar a cabeça sobre o peito de Jesus pode ver o que Jesus vê, perscrutando a realidade a partir do Coração de Jesus, dos sentimentos de Jesus.
Como Bartimeu, digamos confiadamente, nas nossas Eucaristias: «Senhor, tende piedade de nós». Deixemos para trás as vestes de vergonha que usamos desde que Adão e Eva se esconderam do Senhor no Éden e entreguemo-nos, confiadamente, à graça que nos restaura e abre as nossas vidas à vida eterna.
In Mensageiro do Coração de Jesus, maio de 2024