Nelson Faria, sj
Foram muitas as polémicas que rodearam Jesus. Mas há somente um episódio em que as suas palavras criaram tal escândalo que até os seus discípulos o abandonaram em grande número: quando Jesus afirmou ser o pão da vida (Jo 6, 35).
É fácil cair na tentação de interpretar esta passagem de forma simbólica. Contudo, aqueles que então escutaram Jesus estavam bastante habituados à linguagem simbólica e não o entenderam assim, ao ponto de o interrogarem repetidamente sobre o sentido do que disse, como quem pede que se corrija. Ao responder-lhes, Jesus não amacia as suas palavras; pelo contrário, vai mais longe, afirmando que o seu corpo é verdadeira comida e o seu sangue verdadeira bebida (Jo 6, 55).
Jesus tem muitas coisas para ensinar, mas, principalmente, ele deseja ser alimento. Jesus ensina-nos a amar o próximo, a dar a outra face, a rezar pelos inimigos, mas é sobre comer o seu corpo e beber o seu sangue que Ele diz, como últimas palavras de um amigo que parte, «fazei isto em memória de mim», ou seja, alimentem-se de mim e permaneçam comigo.
Jesus não é mais um ser humano entre muitos, um herói, um filósofo, ou sequer um reformador religioso. Ele é o Verbo feito carne, a Palavra que chamou a Criação à existência e que, na Eucaristia, através das suas palavras, altera o pão e o vinho na raiz do ser, tornando-se realmente o seu corpo e sangue, vida sua e sustento nosso.
É inegável que a aparência do pão e do vinho permanece. Bento XVI afirma que «sim, é verdade que não o vemos; mas existem tantas coisas que não vemos e que, não obstante, existem e são essenciais»[1], coisas como a razão, a consciência ou o amor. Os sentidos não nos enganam, mas têm de ser envolvidos por um juízo moldado pela fé para que possam verdadeiramente reconhecer o que têm diante, como os discípulos de Emaús.
A presença real de Cristo sempre foi difícil de compreender. E várias vezes, à revelia da persistência de Jesus em defender o que disse, tentou-se suavizar o mistério. É por isso que, ao longo da história, a presença real é várias vezes proclamada e defendida, desde os Padres da Igreja aos Concílios de Latrão (1059), Trento e Vaticano II. Paulo VI, meses antes de terminar o Vaticano II, sentiu necessidade de publicar a Encíclica Mysterium Fidei para afirmar que Cristo está presente na Igreja quando esta reza, quando pratica obras de misericórdia, quando prega e, de forma sublime, quando a Igreja celebra os sacramentos, em particular a Eucaristia, acrescentando que há uma presença mais sublime e incomparável, que é a presença eucarística. É esta última que é chamada presença real, não para excluir as outras, mas para sublinhar que Jesus está presente por inteiro[2].
São tantas as vezes que alimentamos queixumes sobre a Eucaristia em lugar de nos alimentarmos dela. Discutimos a qualidade do coro, do sacerdote, a conveniência do horário ou a língua em que é celebrada, e remetemos para segundo plano o Senhor, que se dá como alimento. Aqueles temas são secundários, e nunca causa suficiente para nos afastarmos da Igreja e, principalmente, da comunhão, pois na Eucaristia, o Senhor, que é demasiado grande para caber no Universo, está todo inteiro numa migalha de pão, e oferece-se para que nos alimentemos d’Ele, suplica que nos alimentemos d’Ele.
A Eucaristia constrói a Igreja, mas de uma forma que vai além da coincidência de corpos humanos no espaço e no tempo. A Eucaristia não é uma assembleia de associados. É porque nos alimentamos de Cristo que nos tornamos Cristo, que nos cristificamos, como diz São João Crisóstomo, e nos edificamos como Igreja, corpo místico de Cristo. Devemos acudir à Eucaristia como quem tem fome e sede do verdadeiro alimento, como quem precisa de algo sem o qual não sobreviverá.
Atualmente, é comum dizer-se que somos aquilo que comemos. Não há lugar onde tal seja tão verdadeiro como na Eucaristia.
In Mensageiro do Coração de Jesus, fevereiro de 2024
[1] Bento XVI, Pensamentos sobre a Eucaristia. Braga, Editorial AO, 2010, p. 33.
[2] Paulo VI, Mysterium Fidei, n. 41.